edição:Velho Conselheiro Ze de Mello a 30.10.06

Que ligação mantêm com o seu torrão natal?
Há sempre uma raiz onde correm diversos vasos: culturais, afectivos. Acima de tudo, muitas memórias de tempos dificílimos.
Essa raiz é a minha cidade, onde nasci e onde vivi até aos 12anos.
Nunca abandonei a minha cidade e por muitas razões. Desde logo a quase doentia ligação do meu pai à cidade onde não o deixaram morrer; depois porque os meus irmãos e eu mantemos sistemáticas e cruzadas memórias com a cidade, falamos delas, recordamos lugares, episódios, tradições (o Natal e as roncas, a Páscoa e o ramo de alecrim, o S. Mateus, os pendões., os foguetes) uma miríade de sensações que, ao fim e ao cabo, justificam a raiz de que falei.
Desde o momento que saiu de Elvas até se tornar um dos mais prestigiadosadvogados a nível nacional há uma vida. Que momentos regista desse momento chamado vida?
Desde logo o desenraizamento provocado por falta de estabelecimentos escolares.
Os meus pais viram-se forçados a sair de Elvas, com profundo desgosto e uma mágoa indelével para toda a vida, porque não havia Escolas Secundárias Públicas em Elvas. Havia o Colégio Elvense e o Colégio Luso - Britânico e não havia dinheiro para educar e instruir sete filhos. Dai a emigração.
Depois, o Liceu de Santarém onde inicialmente fui recebido como “estrangeiro” o que, com o tempo, desapareceu.
Acabado o liceu, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, as Repúblicas (onde vivi), o curso, os colegas, a Praxe, a estúrdia, os movimentos associativos, a luta contra o regime ditatorial, a guerra colonial.
Finalmente, Lisboa, o Escritório, a Advocacia, os Movimentos Sociais, a Ordem dos Advogados, a decadência da Advocacia, as crises, e, acima de tudo, o 25 de Abril onde o meu irmão António Manuel interveio como Capitão da Escola Prática da Cavalaria e eu, como civil, colaborei.
Hoje ainda, a intervenção cívica e social, as responsabilidades judiciárias, o Escritório, o Conselho Superior do Ministério Publico, a minha família, os meus filhos (e colegas) o desporto, enfim, um mundo da responsabilidades de realizações e de frustrações, que me alimentam e me justificam.
Foi candidato a Bastonário da Ordem dos Advogados, tendo já exercido diversos cargos nessa organização. Como olha um um homem da Justiça para o funcionamento da justiça?
Olho para a Justiça com uma ambivalência esquizofrénica: gosto do que faço, há algo de lúdico nos riscos, nas salas de Audiências, nas relações com Colegas e Magistrados. Ao mesmo tempo, a degradação profunda da Advocacia, a insensibilidade do poder político, a cultura da autoridade do aparelho judiciário, a exclusão social provocada pelo funcionamento da máquina judiciária, a lentidão, a imponderabilidade das decisões, o preço da Justiça, o formalismo patológico, tudo isso me perturba e me desgasta. Dai a relação de amor/ódio com a Justiça.
Sendo advogado do SLBenfica, e com reputação na área da justiça desportiva em Portugal, como olha para um pequeno clube como o "O Elvas CAD"?
Tenho do desporto três visões distintas, mas não antagónicas: o desporto profissional onde desejo que o Elvas não se queime em lume brando (pois já não estamos na época do Patalino que recusou jogar no Benfica por amor à sua terra e à sua camisola).
Depois o desporto escolar (que saudades eu tenho das piscinas que não tive) onde eu penso que Elvas não fica atrás de ninguém em Portugal.
Finalmente, o desporto informal, o que eu pratico e me dá força para suportar a vida que levo (aqui não conheço as infra-estruturas de Elvas, embora, à vista desarmada, não me pareçam boas).
Resumindo: “ O Elvas CAD” pode ser a melhor Escola de Desporto para os jovens e para o fomento do Desporto informal. Se o conseguir…
Um provinciano em Lisboa ou um alfacinha por adopção?
Um inveterado provinciano em todo o lado, mesmo em Londres, em Roma, em Paris ou Nova Yorque. Obviamente, também em Lisboa. Ser provinciano é ser solidário, sentir as pessoas, ser directo, ser substantivo.
O que me perturba são os suburbanos de Lisboa que julgam que são urbanos.
São uns cavaleiros de triste figura.
Desde o Olimpo de Lisboa como se olha para o desenvolvimento do interior, e no caso concreto de Elvas?
Lisboa não é um Olimpo e Elvas não é o deserto.
Radiografar as duas cidades cedo verificará que a grandeza e a miséria de Lisboa são exponencialmente maiores do que em Elvas. A diferença é que a grandeza não é muito maior, mas a miséria é-o.
Sou pela regionalização. Sempre o fui. Não admito que um burocrata de Lisboa comande os destinos de Bragança, de Castelo Branco, de Elvas ou de Évora.
A questão da regionalização foi mal “vendida” no Referendo e deu no que deu. Os Alentejanos do Alto e do Baixo Alentejo podem e devem criar uma Região Administrativa dotada de autonomia, garantindo os fluxos financeiros equiparados às demais regiões que, por via da informalização regional acabam por ser hiperfavorecidas. As industrias agrícolas, o turismo e o comércio alentejanos têm ingredientes e potencialidades próprias que urge aproveitar.
Poderá esta nossa Cidade triunfar economicamente numa economia global?Utilizando que armas?
Pode. Elvas tem potencialidades geográficas, históricas, culturais e sociais que lhe permitem beneficiar da globalização geradora da especialização com qualidade. Tudo vinga desde que tenha qualidade.
Pode parecer prosaico lembrarmo-nos das Azeitonas, das Ameixas, do Sericá, das Muralhas, dos Fortes, dos Arcos da Amoreira, da conexão com Espanha, mas não é. São factores de desenvolvimento com qualidade.
Que lhe falta em Lisboa que teria se estivesse em Elvas e vice versa?
Em Lisboa faz-me falta descansar. Em Elvas faz-me falta trabalhar.
Um retorno às raizes raianas após a aposentação fazem parte do seu horizonte?
Sim, embora de forma partilhada com Lisboa e Santarém.
Que imagem retem ao fechar os olhos e recordar-se da sua cidade natal?
A Rua de S. Lourenço, o Largo das Almas (onde nasci), a Escola Tomaz Pires a Escola da Boa Fé, jogar à bola no Castelo ou no Cão Cão, a Sé e a Praça D. Sancho II, o jardim, o Senhor Jesus da Piedade, os Arcos da Amoreira, o carro de ladeira na Rua do Mercado, o peão, a arco, acima de tudo, os meus pais, a luta pela sobrevivência numa época madrasta de clausura social e de deserto educacional.
Porque será que nos lembramos mais e melhor dos tempos difíceis?
Por isso, Elvas está sempre presente na minha memória e na minha vida.

2 comentários:

Dina disse...

Nota-se que está longe de Elvas há muitos anos...e achei engraçado porque para os mais velhos a Praça da República sempre foi Praça D. Sancho II ( ainda me lembro disso), por isso ao ler as suas recordações esta fez-me sorrir...

Dina disse...

Já agora queria deixar aqui apenas uma sugestão. Seria innteressante começar estas conversas com uma breve apresentação da pessoa em questão, tornava mais fácil a percepção da "conversa"

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